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1 Mulher

até para nascer temos que dar a volta

1 Mulher

até para nascer temos que dar a volta

filhoses e sonhos de abóbora

prometi escrever um Conto de Natal ao Xãzito (a ti, obrigada pelo "empurrão"), mas a minha falta de tempo atrasou a inspiração um pouco (para não dizer muito) ainda assim não quis deixar de o partilhar convosco... este é um dos momentos mais felizes da minha Vida.

Acorda que já são horas... - dizia a mãe junto à minha cama - estamos todos prontos á tua espera ... acabamos por perder o autocarro... Mas o frio era tanto que eu era sempre a última a levantar. Os pais e a mana, já estavam prontos, como era habitual.

Todos os invernos por altura do Natal era assim, comprávamos umas prenditas, alguns doces para a noite de consoada, e lá íamos nós para o Alentejo, para casa dos avós. O complicado, era conseguirmos sair todos de casa a tempo de apanhar o autocarro, e arranjar os sacos necessários para levar tantas coisas.

A distância actualmente foi encurtada pela construção de uma auto-estrada, mas na altura, há 40 anos, demorávamos umas 3 a 4 horas de viagem na camioneta, um dos transportes que ainda serve aquela zona, mas que agora oferece outro conforto aos seus passageiros. A camioneta velha, de estofos de napa castanha e odorenta, levava-nos por diferentes localidades para deixar passageiros, que à semelhança de nós, também iam de encontro aos seus entes queridos passar esta quadra festiva. Tínhamos tempo para tudo, brincar, ler e até dormir.

A chegada à Vila, era uma alegria para todos. Os pais iam ambos ver os respectivos pais, irmãos e sobrinhos. Eu também gostava muito de rever todos os familiares, mas principalmente os meus avós e a minha prima. Uma criança da mesma idade que eu, com quem brincava durante estas curtas estadias no Alentejo. Mas para mim a magia do Natal residia na presença dos meus avós maternos, aquelas duas figuras de rosto enrugado de quem tanto gostava, e que eram para mim uma referência. A noite da consoada e os chocolates que o Pai Natal fazia descer pela chaminé da avó deixando-os cuidadosamente dentro dos meus sapatos e dos da prima, também me encantavam.

O cheiro a lareira acesa perfumava o ar, e apesar do frio e da chuva, lá íamos nós, cada um com o seu saco, excepto a mãe, que tinha que levar a mana ao colo. O avô, de samarra vestida, estava quase sempre na eira à espera de nos ver assomar do cimo da serra, e nós sabíamos muito bem que, assim que chegássemos ao cimo daquela estrada lamacenta e esburacada, veríamos o monte caiado de branco dos avós e o avô a acenar de cajado na mão, com um grande sorriso no rosto.

Evidentemente que à nossa espera tínhamos uma farta e perfumada açorda com carapaus fritos para acompanhar, que a avó cuidadosamente tinha preparado, e de sobremesa umas laranjas sumarentas que o avô tinha colhido na horta, pela manhã. Logo que chegávamos e enquanto decorria o almoço, iam chegando os tios e os primos, que nos tinham visto chegar.

O avô continuava com os problemas de saúde do costume. O estômago que não funcionava muito bem, os intestinos dobrados, entre muitas outras coisas. A avó tinha uma cestinha onde guardava os medicamentos, que mais parecia uma pequena farmácia, onde ela meticulosamente os organizava. Como não sabia ler nem escrever, identificava-os pelas suas cores e formas. Regra geral o avô só tomava um medicamento dois a três dias - por não se dar com eles - dizia ele. A avó, também muito doente dos ossos, uma osteoporose elevadíssima que a ia encurvando à medida que os anos iam passando, continuava a ser quem se queixava menos, não por não ter problemas de saúde, mas por ser uma mulher extremamente rija, habituada às lidas do campo desde tenra idade. Mesmo cheia de dores, fazia as suas coisinhas em casa, tratava das galinhas e coelhos, varria a rua com uma vassoura feita de esteva e ainda ajudava o avô na lida da horta.

Anoitecia cedo no monte, até porque nesta altura do ano os dias são muito pequenos.

Jantávamos quase sempre pelas 18h30m, por causa da idade dos avós, dizia a mãe. Nessa noite de 24 de Dezembro, a mãe tinha preparado o tradicional bacalhau com couve, ovo e batata cozida e de sobremesa um arroz doce, que o avô tanto gostava. Ficávamos na conversa até tarde com eles e com os tios, a petiscar alguns doces tradicionais da época. As finas filhoses que a tia tinha feito, o bolo-rei embalado que a avó tinha comprado na Vila, os sonhos de abóbora da mãe que na noite anterior a deixaram acordada até tarde.

Nos serões de consoada todos partilhavam uns com os outros um pouco das suas vidas. Os avós ouviam atenciosamente e comentavam.  Apesar de nenhum deles saber ler nem escrever, tinham muito orgulho que os netos pudessem continuar os estudos, para terem um bom emprego, diziam.

Eu já estava deitada e de cabeça tapada com as mantas retalheiras, quando a avó se abeirava da cama com a candeia na mão e me dizia: esqueceste de deixar os sapatinhos perto do fogo, assim o Pai Natal desce e não tem onde deixar as prendas. De rompante, saltava da cama, calçava os sapatos do avô, e ia pôr os meus junto às brasas do lume que tinha aquecido o serão.

As manhãs em casa dos avós, começavam sempre muito cedo. A primeira a levantar-se era quase sempre a avó logo seguida pela mãe que enquanto os restantes se vestiam e lavavam o rosto na bacia que estava na cozinha, preparavam o café da manhã. Torradas de pão alentejano, fatias de ovo, queijo de cabra, carapauzitos fritos do almoço do dia anterior e café com leite.

Acordaram cedo! - dizia o tio entre as portas, com uma garrafa de leite de vaca numa das mãos, acabada de tirar da ordenha da manhã. A avó misturava-o quase sempre com um pouco de água, porque puro tinha um sabor muito intenso.

A primeira coisa que eu fazia assim que acordava, e ainda em pijama, era ir descalça até à cozinha, ver o que o Pai Natal me teria deixado nos sapatinhos. E qual era a minha alegria quando lá encontrava chocolatinhos. Ainda assim, o melhor dos presentes para mim, era sempre passar o Natal com os meus avós.

Para o avô a mãe tinha comprado uma camisola interior de pêlo e umas ceroulas, brancas como a geada, que cobria os campos nas manhãs de Inverno. Para a avó, uma camisola interior e umas pantufas quentinhas.

 

Não posso dizer que recebia muitas e caras prendas, mas de facto, estar com os meus pais, irmã e com os meus avós, eram por si só a melhor de todas elas. E hoje, depois dos meus avós “partirem”, recordo cada Natal como se fosse um só. O carinho dos avós, os chocolates dentro dos sapatinhos, são recordações que tento à minha maneira transmitir à minha filha. Só que hoje o Pai Natal já não vem pela chaminé, entra pela porta da varanda e deixa as prendinhas perto dos sapatinhos. 

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